João Paulo
Estado de Minas – 31/12/2011
Se fim de ano é época de avaliação, a semana passada se encarregou de sintetizar a concepção de democracia da Prefeitura de Belo Horizonte, sobretudo na área da cultura. No dia 22, durante a posse do Conselho Municipal de Cultura, o prefeito Marcio Lacerda mandou retirar do recinto o conselheiro eleito Alan Vinicius. O cidadão protestava, ecoando o movimento “Fora Lacerda”, contra o que chamou de “higienização” da administração municipal. Em vez de argumentos, o alcaide redarguiu com a força e convocou os seguranças. Alan foi retirado e só voltou para a posse – razão de ser da solenidade – porque era um dos eleitos ao cargo de conselheiro.
Há muitos fios carregados de tensão e desencapados nesse episódio. Em primeiro lugar, e talvez o mais grave de todos, está a concepção de democracia por trás do ato da autoridade municipal. Em discurso, Marcio Lacerda ainda tentou recuperar a racionalidade de sua atitude, propondo que a oposição tinha dois caminhos: pedir seu impeachment ou ganhar as eleições. Em outras palavras, a gramática de protesto do prefeito se resume a duas flexões, ambas marcadas pela posse do poder. Quem tem o poder fala, quem não tem ouve. O ato democrático de inspiração popular se exaure na eleição, a partir daí o poder se torna absoluto.
Seria ingênuo se não fosse perigoso. O que se viu na reunião, da parte das autoridades presentes, foi uma negação do direito de protesto em nome de certa etiqueta civil. Muitos falaram em respeito às regras (em outras palavras, ficar calado) como base da democracia, esquecendo que a liberdade não apenas vem antes como fundamenta todo o jogo. E, o mais importante, o uso da palavra não é prerrogativa do poder, mas instrumento necessário para sua limitação. Ao apontar como único espaço para a discordância as instâncias do Legislativo, o prefeito deixava entrever ainda a armadilha que vem sendo criada contra a democracia direta num cenário em que arranjos e coalizões criam uma barreira em relação ao descontentamento popular. O aumento dos salários dos vereadores, como se viu recentemente, é apenas um pálido sinal da paga pela obediência. O chumbo grosso não passa nem mesmo pelo plenário.
PORTAS FECHADAS O segundo elemento que merece atenção é o fato de que toda essa confusão ocorreu exatamente no momento em que se dava posse a um órgão surgido da demanda por mais participação direta na gestão da cultura do município. O Conselho Municipal de Cultura, que tem caráter deliberativo, foi das últimas instâncias a ter sua atuação regulamentada em BH, mesmo estando presente em todas as deliberações e conferências do setor nos últimos 10 anos. Enquanto os conselhos de educação, saúde e assistência social já são realidade há muito tempo, só agora a regulamentação permitiu a efetiva criação do conselho de cultura. É sintomático que a posse de um órgão com representação popular expressiva seja saudada com manifestações de violência contra a liberdade de opinião. Tudo leva a crer que se apostava num conselho mudo, submisso e satisfeito em integrar o cronograma. O que é uma ilusão tão recorrente em quem “aceita” os conselhos como insciente da capacidade e da autonomia da mobilização popular.
A demora na instalação do conselho não foi casual. O setor vem sofrendo processo de esvaziamento durante a atual administração, com ameaças que quase se cumpriram de cancelar eventos com história na cidade, como o Festival Internacional de Teatro e o Festival de Arte Negra, que só foram levados adiante em razão da mobilização da categoria artística e, em seguida, de vários setores da sociedade.
O mesmo pode ser dito sobre a tentativa de manietar as manifestações em praças e espaços públicos, pretensamente em nome da segurança e do patrimônio, mas que na verdade atendia a interesses localizados de instituições privadas e até mesmo de certo preconceito de culto, nitidamente localizado nas religiões populares. O mesmo se viu com a tentativa segregacionista de circunscrever as manifestações de periferia na periferia, como se a cidade tivesse sido loteada a partir das classes sociais.
CONSERVADORISMO O terceiro aspecto envolvido no quiproquó – depois da concepção autoritária de democracia e da visão preconceituosa de participação popular – é a forma de conceber a cultura propriamente dita. Tem ficado nítido que não é área de eleição da administração municipal. Além de ser setor antípoda da visão empresarial da coisa pública que fundamenta a atual gestão, foi na cultura que se ergueu o principal anteparo crítico (legítimo) às pretensões (legítimas) de continuidade do projeto político em andamento. Além de desprestigiada, a cultura tem sido vista apenas como manifestação artística ou realização de eventos, sem preocupação com a dimensão de cidadania cultural que tem feito parte de vários projetos em todo o mundo.
Mais que pensar o lado externo da cultura, há hoje um movimento mundial pela ampliação de seu potencial interno, ou seja, da capacidade de produzir e distribuir cultura, que vai muito além das manifestações hegemônicas de mercado ou dos centros tradicionais de difusão. O papel do poder público, como agente político de aglutinação e financiamento, precisa romper o ciclo da continuidade para permitir a experimentação, a inovação, a livre circulação de ideias, a regionalização, o fortalecimento dos coletivos e a viabilização técnica dos produtores.
A mesma lógica de primazia do espetacular e do cânone conservador ganha eco na concepção de cultura do estado, com seu equivocado projeto de circuito cultural centralizador, submisso aos interesses empresariais, distante da regulação pública e interditado à participação popular. Nesse aspecto se entende a razão da aliança entre os dois níveis de governo nas duas últimas eleições para a prefeitura e o governo do estado: pelo menos em matéria de cultura, eles pensam igual. E pensam mal.
BOM COMEÇO O novo Conselho Municipal de Cultura tem muitas tarefas pela frente. Sua composição paritária (metade indicada pelo governo, metade pela sociedade civil) mescla representantes das regionais com atores do movimento cultural, que deverão se unir em propostas a serem negociadas com os indicados pelo Executivo municipal. Geralmente, os conselhos se concentram na crítica dos rumos das políticas setoriais, mas podem avançar para a formulação de novos modelos de gestão, para a transferência de recursos e para a democratização do setor.
A crítica aos conselhos quase sempre parte dos que têm alergia a povo e a política, apontando nas instâncias de participação o vício de muitas reuniões e poucas atitudes. Num cenário como o da cultura em Belo Horizonte, a primeira tarefa vai ser organizar o conselho para dar conta da terra arrasada que vai encontrar em termos de políticas públicas. Nessa hora, sua maior arma vai ser mesmo a capacidade de fazer política, ainda que o prefeito não goste. E é por iniciar fazendo política (o protesto e a palavra são instrumentos clássicos) que o Conselho Municipal de Cultura começou bem. Graças ao Alan.
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